domingo, 6 de dezembro de 2009

Em mim...

     Existe um ser que mora dentro de mim como se fosse casa dele, e é. Trata-se de um cavalo preto e lustroso que apesar de inteiramente selvagem – pois nunca morou antes em ninguém nem jamais lhe puseram rédeas nem sela – apesar de inteiramente selvagem tem por isso uma doçura primeira de quem não tem medo! Come às vezes na minha mão. Seu focinho é úmido e fresco. Eu beijo o seu focinho. Quando eu morrer, o cavalo preto ficará sem casa e vai sofrer muito. A menos que ele escolha outra casa e que esta outra casa não tenha medo daquilo que é ao mesmo tempo selvagem e suave. 
     Aviso que ele não tem nome. Basta chamado e se acerta com seu nome. Ou não se acerta, mas, uma vez chamado com doçura e autoridade, ele vai. Se ele fareja e sente que um corpo-casa é livre, ele trota sem ruídos e vai. Aviso também que não se deve temer o seu relinchar. A gente se engana e pensa que é a gente que está relinchando de prazer ou de cólera, a gente se assusta com o excesso de doçura do que é isto pela primeira vez. 
     Sorrindo, gosto e penso que o cavalo sou eu mesmo.

sábado, 5 de dezembro de 2009

Aprendizagem ...

     Pelo mesmo fato de ter me olhado no espelho, senti como minha condição é pequena porque um corpo é menos que o pensamento – a ponto de que é inútil ter mais liberdade – minha condição pequena não me deixa fazer uso da liberdade.
     E de repente sorri para mim mesmo com um sorriso amargo, já cansado porque não paro de ser. Sou a união sensual do dia com a sua hora mais crepuscular. Com olhos abertos como diamantes e esmeraldas. Mas as vezes não suporto e o diamante dos olhos se liquefaz em duas ou mais lágrimas.
     Mas uma coisa que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para a frente. Pois apesar de, eu tive alegria.
     Ao lembrar da minha própria imagem, vista antes ao espelho, acho-me tão de algum modo bonito, que tenho que dar esse aspecto de beleza a alguém. E esse alguém só pode ser quem saiba ver a beleza disfarçada e tão recôndita que um ser vulgar não poderia ver. Ah! Grito mudo de repente, que o Deus me ajude a conseguir esse ato impossível, só o impossível me importa! Nem sequer entendo o que quero dizer com isso, mas quando tocar o impossível, direi baixo, audível, humilde: - Obrigado!
     Através de meus graves defeitos – que um dia talvez possa mencionar sem me vangloriar – é que chego agora a poder amar. A consciência de minha permanente queda humana me levou ao amor. E aquelas quedas, aquelas quedas é que começaram a fazer minha vida.
     Talvez sejam os meus “apesar de” que, cheios de angústia e desentendimento de mim mesmo, me tivessem levado a construir pouco a pouco uma vida. Aproveito minhas feridas abertas, e a carne viva para me conhecer melhor. Penso no meu nariz reto, na minha cara marcada pela aprendizagem lenta da vida, nos meus lábios que, porventura, alguém jamais beijou e/ou vai beijar.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Hora de me vestir

     Olhei-me no espelho e vi que só sou bonito por ser um homem. Meu corpo é exato e forte, um dos motivos imagináveis que faz com que me sinta desejável. Escolho uma roupa qualquer, quase sem modelo, o modelo é o meu próprio corpo mas ... enfeitar-me é um ritual que me torna grave. A vestimenta já não é um mero tecido, transforma-se em matéria de coisa e é esse estofo que com o meu corpo ela dá corpo - como pode um simples pano ganhar tanto movimento?
     Meus cabelos de manhã lavados e secos ao sol, estam da seda castanha mais antiga - bonito? Não. Homem. Passo perfume no nascimento das articulações - o ar é perfumado com o cheiro de mil folhas e flores esmagadas - e essa é uma das imitações do mundo, eu que tanto procuro aprender a vida - com o perfume, de algum modo intensifico o que quer que eu seja e por isso não posso usar perfumes que me contradigam. Perfumar-se é uma sabedoria instintiva, vinda de (primeiramente) milênios de mulheres aparentemente passivas.
     Aprendo que, como toda arte, esta exige que eu tenha um mínimo de conhecimento de mim: uso perfume levemente sufocante, gostoso como húmus, como se a cabeça deitada, esmagasse húmus, cujo nome não digo a ninguém porque ele é meu, é eu, já que para mim perfumar-se é um ato secreto e quase religioso.
     Orelhas apenas únicas e simples, alguma coisa modestamente nua. E há também algo em meus olhos que diz com melancolia: decifra-me, meu amor, ou serei obrigado a devorar-te, agora pronto, vestido, o mais bonito quanto posso chegar a ser. Me comporto como um virgem que não sou mais. Estranho que no entanto parece não adivinharem que quero amor.
     Me vi de corpo inteiro ao espelho, quero não ser mais um corpo único. Ser um único corpo me dá, como agora, a impressão de que fui cortado de mim mesmo. Ter um corpo único circundado pelo isolamento, torna tão delimitado esse corpo, que então me amedronto de ser um só. Digo, deslumbrado ao me ver avidamente de perto no espelho: como sou misterioso, sou tão delicado e forte, e a curva dos meus lábios mantém a minha inocência.
     Parece então, que não há homem ou mulher que por acaso não se tivesse olhado ao espelho e não se surpreendesse consigo próprio. Por uma fração de segundo a pessoa se vê como um objeto a ser olhado, o que poderiam chamar de narcisismo, eu chamo de: gosto de ser. Encontrar na figura exterior os ecos da figura interna é fascinante. Então é verdade de que não imginei: Eu Existo.